A autora do blog O Berço do Mundo, Ruthia Portelinha, deixou-nos o seu contributo. Apaixonada por livros e viagens faz-nos viajar pelas suas palavras nos posts que faz no seu blog. Não deixem de o visitar e deliciar-se.
Hoje viajamos pela sua análise à leitura de O Cemitério de Praga, de Umberto Eco.
O Cemitério de Praga, de Umberto Eco
Acabadinho de ler.
Tinha talvez expectativas demasiado altas, motivadas pelo autor, que é
brilhante, do período histórico a que remete, da sinopse estupenda que deve ter
sido escrita por um marketeer…
“Durante o século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, encontramos uma
satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres num esgoto
parisiense, um garibaldino que se chamava Ippolito Nievo, desaparecido no mar
nas proximidades do Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada
alemã, a disseminação gradual daquela falsificação conhecida como Os Protocolos
dos Sábios de Sião (que inspirará a Hitler os campos de extermínio), jesuítas
que tramam contra maçons, maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam
padres com as suas próprias tripas, um Garibaldi artrítico com as pernas
tortas, os planos dos serviços secretos piemonteses, franceses, prussianos e
russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem os ratos, golpes de punhal,
horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que entre os vapores do
absinto planeiam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários,
testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras.”
Apesar de promissor, não
gostei.
O protagonista - um tal
capitão Simonini, falsário, contrabandista e glutão - é demasiado debochado, as
conspirações demasiado intrincadas, os discursos demasiado longos, demasiado é
também o ódio que transborda daquelas páginas.
Ódio pelas mulheres -
pois nutre “um horror natural” por
essa “estirpe do demónio”.
Ódio pelos padres – de
quem recorda “olhares fugidios,
dentaduras estragadas, hálitos pesados, mãos suadas que tentavam acariciar-me a
nuca. Que nojo. Ociosos, pertencentes às classes perigosas, como os ladrões e
vagabundos. (…) E, entre os padres mais indignos, o Governo escolhe os mais
estúpidos e nomeia-os bispos” (pp.23-24).
Ódio pelos alemães – “o mais baixo nível de humanidade concebível
(…) produz em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função
intestinal em prejuízo da cerebral” (pp. 16-17).
Ódio por alguns intelectuais
e pintores “medíocres” como Proust, Zola ou Monet.
Ódio pelos franceses -
que são maus, matam por vício, são ignorantes e avarentos, crêem que todo o
mundo fala a sua língua (p. 22).
Ódio pelos seus
próprios compatriotas – “o italiano não é
de fiar, é mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade com o punhal do que
com a espada, melhor com o veneno do que com o remédio, viscoso na negociação,
coerente só no mudar de bandeira conforme o vento” (p. 23).
E, sobretudo, ódios pelos
judeus, receptáculo de todos os vícios - um hebreu, diz o protagonista, “para além de vaidoso como um espanhol,
ignorante como um croata, cúpido como um levantino, ingrato como um maltês,
insolente como um cigano, imundo como um inglês, gorduroso como um calmuco,
imperioso como um prussiano e maledicente como um astiense é adúltero por cio
irrefreável” (p. 16)
Nem a descrição de uma
missa negra, com laivos de uma orgia pedófila, salva esta obra. E a falta de
escrúpulos deste Simonini é perturbante: ele que perde a virgindade nessa tal
missa macabra, acaba por assassinar a sua parceira de cópula e esconder o
cadáver na cloaca que repousa debaixo das casas parisienses.
Perdoe-me senhor
Umberto Eco, mas o seu livro não é inspirador. Interessante talvez. Belissimamente
escrito. Mas não inspirador. Vale pelas ilustrações (de época) e pelo retrato
que faz de algumas personagens históricas [como Garibaldi e um Freud viciado em
cocaína]. Desiludida!