Margarita
e o Mestre, de Mikhail Bulgakov
Margarita
e o Mestre publicado pela primeira vez na revista Moskva, mais de vinte anos
após a morte do autor — a primeira parte em Novembro de 1966 e a segunda em
Janeiro do ano seguinte. Mikhail Bulgákov trabalhara nesta sua obra durante
mais de dez anos, tendo escrito diferentes versões. A última foi ditada à sua
companheira Elena Bulgákova, quando o autor se encontrava já muito doente, em
Março de 1940. O romance é composto por duas narrativas ligadas entre si — uma
passa-se na Moscovo dos anos 30 e a outra na Jerusalém antiga. As personagens
são estranhas, complexas, ambíguas e algumas delas sobrenaturais, como Woland.
As principais são o Mestre e a sua amante, Margarita. Como afirma Samuel
Thomas, «o romance pulsa de maliciosa energia e invenção. Por vezes uma dura
sátira da vida soviética, uma alegoria religiosa da dimensão do Fausto, de
Goethe, e uma indomável fantasia burlesca, é uma obra de riso e terror, de
liberdade e servidão — um romance que explode as verdades oficiais com a força
de um carnaval descontrolado». A primeira edição desta tradução foi publicada
em 1991, estando há muito esgotada.
Margarita
e o Mestre surge nas minhas mãos
com uma colecção editada pelo jornal Público há quase 10 anos, a colecção Mil
Folhas. Até então Bulgakov era um estranho para mim. Um estranho do qual nunca
tinha ouvido falar…
Quando o li a primeira vez, nessa
altura, ficou logo como um dos meus livros preferidos. Esta não é, portanto, a minha
primeira impressão do livro. No entanto, na altura nada escrevi sobre o mesmo e
com a crescente vontade de voltar ao seu mundo juntou-se o útil ao agradável.
Bulgakov transporta-nos para um
mundo quase possível de equiparar a Murakami e o seu Kafka à Beira-Mar. Porquê? Pela história quase surreal à qual nos
transporta.
Dois escritores russos encontram-se
no Largo do Patriarca onde se entregam a uma discussão sobre a existência de
Jesus Cristo. A eles junta-se um estrangeiro de nome Woland, que nenhum
conhece, que garante a verdade da existência de Jesus. Como? Ele esteve lá
quando Cristo foi crucificado.
A partir daqui sai uma discussão
sobre o bem e o mal, sobre Deus e o Diabo, com a forte convicção dos dois
escritores de que tais figuras não existem contrariada prontamente pelo
estrangeiro.
Até aqui tudo normal, não fossem os
acontecimentos seguintes. Com a morte de Berlioz, um dos escritores, em poucos
minutos, Ivan, o outro escritor, crê que a culpa é do estrangeiro que a previra
e dos seus “capangas” onde se inclui um grande gato preto que fala e anda nas
patas traseiras. Começa uma perseguição de Ivan a Woland que acaba com o poeta
num hospício onde conhece um paciente que se intitula Mestre.
Depressa descobrimos que Woland
tinha razão ao assegurar a existência das duas entidades. Isto porque ele é o
próprio Satã acabado de chegar a Moscovo para avaliar como são as pessoas e a
cidade nesta data mais moderna. Woland não vai apenas mexer com a vida de Ivan.
Ao instalar-se na antiga casa de Berlioz coloca a nu todos os podres de pessoas
que o rodeavam.
Enquanto lemos a narrativa de
Woland e Moscovo somos surpreendidos por capítulos que descrevem a crucificação
de Jesus Cristo no tempo de Pôncio Pilatos. Quando “ouvimos” o Mestre contar a
Ivan a sua história percebemos que esses capítulos mais não são que o
manuscrito do Mestre e a causa da sua estadia no hospício. Com ele descobrimos
ainda a sua história de amor com Margarita.
Podemos dividir o livro em duas
partes. Uma primeira com a aparição de Woland, as mortes, os desaparecimentos,
a loucura instalada em Moscovo com coisas surreais a acontecer em todo o lado.
E uma segunda parte em que conhecemos a história do Mestre e de Margarita, que
afinal dão o título ao livro, e o papel de Margarita na festa de Woland.
Sim, porque Woland, o Satã, dá
todos os anos um baile na Terra. E todos os bailes precisam de uma rainha. Por
isso em cada local, todos os anos, é escolhida uma “rainha” diferente para ser
a anfitriã. Aqui temos uma referência à rainha Margot, sendo que todas as
anfitriãs têm de possuir o nome de Margarita (consoante a tradução dada em cada
país).
Margarita aceita participar no
baile tendo e vista a sua reunião com o Mestre. E assim temos um segundo
capítulo em que nos é descrito o baile, a versão de Margarita da sua relação
com o Mestre, e, por fim, a saída de Woland de Moscovo.
Confusos?
Parece, mas no fundo não é. A
história leva-nos da total descrença à gargalhada. Conseguimos perfeitamente
distinguir as críticas sociais que Bulgakov tenta passar na história. É, sem
dúvida, um retrato da Moscovo da altura. Um retrato confuso… mas não deixa de o
ser. Coloca em causa as ideologias da altura, a proliferação de
pseudo-escritores que nada trazem de novo, a cultura e as crenças de um povo.
A leitura é feita muito facilmente
porque a escrita é fluída. E a história “apanha-nos” de forma tão rápida que é
impossível deixá-lo. O contra é toda aquela parafernália de nomes russos que
com diminutivos ainda fica mais complicado de perceber quem é quem. É
perfeitamente normal ter de, por uma ou outra vez, voltar atrás para perceber a
quem pertence aquela alcunha ou diminutivo.
Haveria muito mais a dizer sobre o
livro e a sua história. Mas alongar-me faria contar passagens que seriam
spoilers e estragar a surpresa de quem o lê. Garanto-vos no entanto que é um
livro muito divertido e que vale sem dúvida a pena.
Deixo-vos apenas esta passagem. Por
muitas vezes que o leia é sempre uma das minhas partes preferidas:
"Tendo
perdido um dos perseguidos, Ivan concentrou a sua atenção no gato e viu aquele
estranho animal aproximar-se do estribo do eléctrico A, que estava na paragem,
empurrar insolentemente uma mulher (...) agarrar-se ao varão e até tentar meter
na mão da condutora (...) uma moeda de dez copeques.
(...)
Nem
a condutora, nem os passageiros pareciam surpreendidos com o essencial: não o
facto de o gato subir para o eléctrico, o que seria apenas meia desgraça, mas o
facto de ele querer pagar o bilhete."
Já não leio este livro há quase 10 anos, acho que está na altura de o reler.
ResponderEliminarBeijinho
P.S. A única vantagem de estar de baixa é teres mais tempo para nos presenteares com as tuas opiniões literárias.
Sim, devemos ter lido o livro na mesma altura. Soube tão bem voltar a ele. Nem imaginas. Mesmo depois do esforço que foi não trair o Quixote com o Bulgakov. Mas o senhor Bulgakov andava a chamar-me e, olha, não consegui resistir ao seu apelo.
EliminarRealmente o estar de baixa tem a vantagem de ler mais. Depois com o trabalho e o teatro vai-se tudo abaixo.
Beijo enorme!